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William Lane Craig: Jesus e a Mitologia Pagã

21 de fevereiro de 2011 § 0


Tradução: Marcelo N. Motta

Pergunta:

Dr. Craig,

Obrigado por sua ajuda em tudo que você faz para mostrar a verdade que está em Cristo.
 
Na verdade eu só tenho uma pergunta, e, para ser franco, ela me frustra inúmeras vezes. Acontece quase todas as vezes que eu debato cristianismo com alguém.

A pergunta, “Jesus é um mito copiado ou uma pessoal real?” é a fonte de objeção que eu recebo a maioria das vezes. Eles listam todas as similaridades entre Jesus e outros deuses e constelações mitológicos e dizem “Vê como são parecidos?”

Parece que não importa como eu refuto certa similaridade entre Cristo e outra crença mitológica, eles não levam muito a sério o que digo, porque respondem que “eu tenho trabalhado muito duro para salvar minha religião.”

Esses argumentos são sólidos? Eles sequer são debatidos nos altos níveis acadêmicos ainda?
Eu realmente gostaria de saber sua visão nesse ponto, pois continuo trombando nisso e francamente estou cansado de tentar refutar cada similaridade.

Obrigado por tudo que você tem feito. Eu já fui um ateu, mas o argumento a favor de valores e deveres morais objetivos foi o que me levou a Cristo.

Kevin

Dr. William Lane Craig responde:

O falecido Robert Funk, fundador do radical Seminário Jesus, reclamava amargamente do abismo que existe entre os principais estudos e as crenças populares sobre Jesus. Funk pensava principalmente sobre a distância entre o pietismo popular e o conhecimento histórico sobre Jesus; mas em lugar algum o abismo é tão grande como entre a irreligiosidade popular e os estudos sobre o Jesus histórico.

O movimento do Pensamento Livre, que alimenta a objeção popular que as crenças cristãs sobre Jesus são derivadas da mitologia pagã, está empacado entre os estudos do final do século XIX. De certa forma isso é impressionante, já que existem muitos estudiosos contemporâneos céticos, como os do Seminário Jesus, cuja obra os livre pensadores poderiam utilizar a fim de justificar seu ceticismo sobre a compreensão tradicional de Jesus. Mas isso só serve para mostrar como esses popularizadores não têm contato com o trabalho de estudiosos sobre Jesus. Eles estão um século desatualizados.

Voltando à época da chamada escola de História de Religiões, estudiosos em religiões comparadas encontraram paralelos a crenças cristãs em outras religiões, e alguns pensaram em explicar que essas crenças (incluindo a na ressurreição de Jesus) foram influenciadas por esses mitos. Hoje, no entanto, raramente algum estudioso pensa em mitos como uma categoria importante para se interpretar os Evangelhos. Os estudiosos perceberam que a mitologia pagã é simplesmente o contexto interpretativo errado para se compreender Jesus de Nazaré.

Craig Evans chama essa mudança de o “Eclipse da Mitologia” na pesquisa sobre a vida de Jesus (veja seu artigo excelente “Life-of-Jesus Research and the Eclipse of Mythology,” Thelogical Studies 54 [1993]: 3-36). James D. G. Dunn começa assim seu artigo sobre “Mitos” no Dicionário de Jesus e dos Evangelhos (IVP, 1993) com a clara rejeição, “Mito é um termo de, pelo menos, relevância duvidosa para o estudo de Jesus e dos Evangelhos.”

Algumas vezes essa mudança é referida como a “rejudaização de Jesus.” Pois Jesus e seus discípulos eram judeus do primeiro século, e é contra esse pano de fundo que devem ser compreendidos. A rejudaização de Jesus tem ajudado a tornar injustificado qualquer compreensão do retrato dEle nos Evangelhos como influenciado significativamente pela mitologia.

Essa mudança é proferida em relação à historicidade dos milagres e exorcismos de Jesus. Estudiosos contemporâneos podem não estar mais preparados para acreditar no caráter sobrenatural dos milagres e exorcismos de Jesus do que os estudiosos de gerações anteriores. Mas eles não estão mais dispostos a atribuir essas histórias à influência dos mitos gregos do homem-divino (theios aner). Antes, os milagres e exorcismos de Jesus devem ser interpretados no contexto das crenças e práticas judaicas do primeiro século. O estudioso judeu Geza Vermes, por exemplo, tem chamado a atenção aos ministérios dos realizadores de milagres e/ou exorcistas carismáticos Honi “o desenhista de círculos” (primeiro séc. a.C.) e Hanina ben Dosa (primeiro séc. d.C.) e interpreta Jesus de Nazaré como um judeu hassídico ou um santo. Hoje o consenso dos estudos sustenta que a realização de milagres e exorcismos (apoiando a questão de seu caráter sobrenatural) pertence, sem sombra de dúvida, a qualquer reconstrução historicamente aceitável do ministério de Jesus.

O colapso da antiga escola da História de Religiões ocorreu por principalmente dois motivos. Primeiro, estudiosos perceberam que os paralelos alegados eram ilegítimos. O mundo antigo era um lugar cheio de mitos de deuses e heróis. Estudos comparativos na religião e literatura requerem sensibilidade às suas similaridades e diferenças, ou o resultado será inevitavelmente distorção e confusão. Infelizmente, aqueles que apresentaram paralelos às crenças cristãs falharam em exercer essa sensibilidade. Veja, por exemplo, a história do nascimento virginal, ou, mais precisamente, a concepção virginal de Jesus. Os paralelos pagãos alegados a essa história são sobre lendas de deuses que se materializaram e tiveram relações sexuais com mulheres humanas para gerar uma prole humano-divina (como Hércules). Assim como esta, essas histórias são exatamente o contrário dos relatos dos Evangelhos, nos quais Maria concebeu Jesus sem ter tido nenhuma relação sexual. As histórias dos Evangelhos sobre a concepção virginal de Jesus são, na verdade, únicas no Oriente Próximo antigo.

Ou considere o evento dos Evangelhos que eu acho mais interessante: a ressurreição de Jesus dentre os mortos. Muitas das alegadas similaridades a esse evento são na verdade histórias apoteóticas, a divinização e assunção do herói ao céu (Hércules, Rômulo). Outras são sobre desaparecimentos, afirmando que o herói foi-se para um plano superior (Apolônio de Tiana, Empédocles). Outras ainda são símbolos sazonais do ciclo das colheitas, conforme a vegetação morre na estação seca e volta à vida na estação chuvosa (Tamuz, Osíris, Adônis). Algumas são expressões políticas de adoração aos imperadores (Júlio César, César Augusto). Nenhuma delas é similar à idéia judaica de ressurreição dos mortos. David Aune, especialista em literatura comparada do antigo Oriente Próximo, conclui, “nenhum paralelo a elas [tradições da ressurreição] é encontrado nos escritos greco-romanos” (“The Genre of the Gospels,” em Gospel Perspectives II, ed. R. T. France and David Wenham [Sheffield: JSOT Press, 1981], pg 48).

Na verdade, a maioria dos estudiosos chegaram a duvidar se, apropriadamente falando, houve realmente algum mito de deuses que morriam e ressurgiam! No mito de Osíris, um dos mitos sazonais mais conhecidos, ele nem chega a voltar à vida, mas simplesmente continua a existir exilado no sub-mundo. Numa revisão recente da evidência, T. N. D. Mettinger informa: “A partir da década de 30… um consenso se desenvolveu ao significado que os deuses, “que morriam e ressurgiam”, morreram, mas não voltaram a viver novamente… Aqueles que continuam a pensar diferente são vistos como sobreviventes de uma espécie quase extinta.” (Tryggve N. D. Mettinger, The Riddle of Resurrection: “Dying and Rising Gods” in the Ancient Near East [Stockholm, Sweden: Almquist & Wiksell International, 2001], pg 4, 7).

O próprio Mettinger acredita que mitos de deuses que morriam e ressurgiam existiram nos casos de Dumuzi, Baal e Melqart; mas reconhece que tais símbolos são bem diferentes da antiga crença cristã na ressurreição de Jesus:
“Os deuses que morriam e ressurgiam estavam muito ligados ao ciclo sazonal. Sua morte e retorno eram vistos como refletidas nas mudanças nas plantas. A morte e ressurreição de Jesus é um evento único, não se repete, e não está ligado às mudanças sazonais… Não existe, pelo o que eu sei, nenhuma evidência clara que a morte e ressurreição de Jesus são uma construção mitológica, baseada nos mitos e ritos dos deuses sazonais das nações vizinhas. Enquanto for estudada com proveito contra o pano de fundo da crença da ressurreição judaica, a fé na morte e ressurreição de Jesus mantém seu caráter único na história das religiões. O mistério continua (Ibidem, pg 221).”
Repare no comentário de Mettinger, que a crença na ressurreição de Jesus pode ser proveitosamente estudada contra o pano de fundo das crenças judaicas da ressurreição (não mitologia pagã). Aqui vemos aquela mudança nos estudos no Novo Testamento que eu apontei acima como a rejudaização de Jesus. A ilegitimidade das similaridades alegadas é apenas uma indicação que a mitologia pagã é o esquema interpretativo errado para compreender a crença dos discípulos na ressurreição de Jesus.

Segundo, a escola da História de Religiões sucumbiu como uma explicação para a origem das crenças cristãs sobre Jesus, porque não houve nenhuma conexão causal entre os mitos pagãos e a origem das crenças cristãs sobre Jesus. Veja, por exemplo, a ressurreição. Os judeus conheciam os deuses sazonais mencionados acima (Ez 37.1-14) e os acharam repugnantes. Por isso, não há traços de culto a deuses sazonais na Palestina do primeiro século. Para os judeus, a ressurreição à glória e imortalidade não aconteceria antes da ressurreição geral de todos os mortos no fim do mundo. É inacreditável pensar que os discípulos originais teriam súbita e sinceramente acreditado que Jesus de Nazaré ressuscitou dentre os mortos apenas porque ouviram sobre mitos pagãos de deuses que morriam e ressurgiam.
Mas, de certo modo, tudo isso é irrelevante à sua pergunta principal, Kevin. Pois, como você mostrou, as pessoas com que você conversa não têm acesso aos estudos. Quando você mostra a elas a ilegitimidade das similaridades alegadas, então é acusado de “ter trabalhado muito duro para salvar sua religião.” Essa é uma situação que você não pode vencer. Então, estou inclinado a dizer-lhe que você não deveria ocupar-se em “tentar refutar cada similaridade.” Antes, eu acho que uma atitude mais genérica e desinteressada de sua parte pode ser mais eficaz.

Quando eles disserem que as crenças cristãs sobre Jesus vieram da mitologia pagã, eu acho que você deveria rir. Então olhe para eles com os olhos arregalados e um grande sorriso e diga, “Vocês realmente acreditam nisso?” Aja como se tivesse acabado de conhecer alguém que acredite na terra plana ou na conspiração de Roswell. Você podia dizer algo do tipo, “Cara, essas velhas teorias estão mortas há mais de cem anos! Da onde você está tirando isso?” Diga-lhes que isso é apenas lixo sensacionalista e não estudos sérios. Caso insistam, então peça a eles que lhe mostrem as próprias passagens que narram a suposta similaridade. São eles que estão nadando contra o consenso dos estudos, então faça-os trabalhar duro para salvar a religião deles. Eu acho que você descobrirá que eles nem se quer leram as fontes originais.

Se eles chegarem a citar um trecho de uma fonte, eu acho que você ficará surpreso com o que verá. Por exemplo, no meu debate sobre a ressurreição com Robert Prince, ele dizia que as curas que Jesus fez vieram dos relatos mitológicos de curas, como as de Esculápio. Eu insisti que ele lesse a todos uma passagem das fontes originais mostrando a suposta similaridade. Quando ele leu, o que alegava não tinha nada a ver com as histórias dos Evangelhos sobre as curas de Jesus! Essa foi a melhor prova que a origem das histórias não estava relacionada.

Lembre-se: qualquer um que insiste nessa objeção tem de suportar o ônus da prova. Ele precisa mostrar que as narrativas são paralelas e, além disso, que são causalmente ligadas. Insista que eles suportem esse ônus, caso você leve as objeções deles a sério.

Fonte: Apologia

Vincent Cheung: Cessacionismo e o Falar em Línguas

19 de fevereiro de 2011 § 0


Um suplemento ao Comentário sobre 1 & 2 Tessalonicenses
por Vincent Cheung

~ 1 ~

Algumas pessoas me chamam de um Neo-Pentecostal Reformado.[1] Lembro de uma pessoa que me criticou sobre a base que o termo é inapropriado e um oxímoro. Ele pensava que um Reformado não poderia ser ao mesmo tempo um Neo-Pentecostal, e um Neo-pentecostal possivelmente não merecia ser chamado de Reformado.

Embora eu concorde que grande parte da minha teologia esteja de acordo com aqueles que são Reformados, eu não me chamo de Reformado. E embora eu afirme a continuidade dos dons sobrenaturais do Espírito, eu não me chamo de Neo-Pentecostal. Essa pessoa tem certo conceito de Reformado, e certo conceito de Neo-Pentecostal, e esses dois são incompatíveis. Mas por que eu devo ser uma dessas coisas, ou as duas? A forma como ele pensa sobre esses dois grupos torna-os incompatíveis, ou pode ser que eles sejam de fato incompatíveis; mas o que isso tem a ver comigo?

Uma pessoa poderia pensar que um cristão deveria ser Batista ou Presbiteriano, e se uma pessoa afirma os sacramentos batistas, mas o governo presbiteriano – ou qualquer coisa que seja supostamente batista, ou outra que seja supostamente presbiteriana – então ele deve estar errado, simplesmente sobre a base que, de acordo com ele, essas duas categorias são incompatíveis. Mas esse é um argumento pobre, e não faz nada para abordar se a doutrina dessa pessoa é correta ou errada. Contudo, isso nos diz que o entendimento do crítico sobre o mundo cristão é limitado a um conceito limitado de Batistas e Presbiterianos. Ele é como um sapo preso no fundo de um poço, cuja ideia dos céus é tão pequena quanto a abertura por meio da qual ele vê o firmamento.

O mundo cristão é muito amplo. Simplesmente porque uma pessoa crê na doutrina bíblica da predestinação não significa que ela tenha aprendido isso de Calvino. Pode ser que tenha aprendido de Agostinho. Ou talvez aprendeu a mesma de Hodge, Shedd ou Berkhof. Pode ser que tenha aprendido-a de Vincent Cheung, ou de você, ou do seu pastor. E quanto a isso que direi agora? Pode ser que ele leu a Bíblia por si mesmo e aprendeu dali! Mas… isso é possível? É possível que uma pessoa possa ler passagens bíblicas e aprender realmente doutrinas bíblicas? Quem já ouviu tal coisa?  Mesmo que seja possível, ele é ou não um calvinista? Pode ser que ele tenha aprendido a doutrina de alguém que você nunca ouviu falar. Ora, seria muito tolo você aplicar suas críticas sobre Calvino a essa pessoa, como se ele fosse algum discípulo devoto dele, embora nunca tenha ouvido falar de Calvino.

Assim, embora rótulos e categorias possam tornar a conversa mais conveniente, eles podem também tornar a pessoa que os usa preguiçosa e descuidada. Você não pode usar um argumento com rótulos e categorias que o seu alvo não tenha obrigação de satisfazer. Quando faz isso, você está apenas mostrando que a sua maneira de entender os termos de alguma forma gera certo conflito e confusão. Você não está dizendo muito mais que isso. Sem dúvida, você não pode defender nenhuma coisa ou refutar alguém sobre essa base somente.

Dessa forma, eu advertiria você contra categorizações simplistas que resultam em representações incorretas. Há aqueles que pensam que se uma pessoa crê na continuação das manifestações sobrenaturais do Espírito, então ela deva ser como os Pentecostais – isto é, aqueles pentecostais malucos que eles conhecem. Não lhe ocorre que essa pessoa poderia ser totalmente diferente dos  Pentecostais, que mesmo sua doutrina sobre os dons espirituais poderia ser vastamente diferente. E parece não lhe ocorrer que podem existir Pentecostais em algum lugar que não são malucos. É injusto para um cessacionista usar os Pentecostais como o padrão, como se uma pessoa devesse ser como os Pentecostais que ele já viu, ou um cessacionista como ele.

~ 2 ~

Quando diz respeito à continuação dos milagres, quer ocorram a uma pessoa ou por meio de uma pessoa, a doutrina da soberania de Deus resolve o assunto. Deus pode fazer tudo o que deseja, e se desejar, ele pode operar um milagre hoje. Este pode ser um milagre feito a uma pessoa, ou um milagre que parece ser realizado por meio de um instrumento humano. Deus pode fazer tudo o que deseja, incluindo milagres. Se uma pessoa questiona isso, ele tem um problema bem maior do que afirmar o cessacionismo ou não. Sua crença sobre os aspectos mais básicos sobre Deus é falha.

Os cessacionistas não objetam ao acima. Eles prontamente concordam que Deus pode fazer tudo o que deseja. Se isso é verdade, então é concebível que eu possa orar por um paciente com câncer, e se Deus quiser, ele cure a pessoa, e esta fique livre do câncer. Aqui não estou dizendo que isso acontece todas as vezes, mas somente que é concebível, dada a doutrina da soberania de Deus.

Todos os que creem em Deus concordam com isso. Contudo, na prática pouquíssimos creem. Eles dizem que creem na soberania de Deus, mas negam-na por suas obras, tendo uma forma de doutrina sã e piedade, mas negando o poder dela. Quão frequentemente os cessacionistas oram a Deus para curar o doente? Não, não estou me referindo a orações que pedem que Deus guie os médicos. Estou me referindo a petições que pedem a Deus para curar a pessoa doente. Quão frequentemente os cessacionistas sequer tentam isso? Se a doutrina deles permite a possibilidade que Deus poderia curar se desejar, então por que não pedir a ele para curar? Deus é salvador da alma, mas não do corpo? O braço do Senhor está muito encolhido, e os seus ouvidos surdos para ouvir?

Você diz: é verdade que Deus pode curar se quiser, mas talvez ele nunca mais queira curar. Como você sabe isso? Uma coisa é dizer que ele poderia não desejar curar em algumas ocasiões, mas outra é alegar que ele não mais deseja curar. Ninguém sabe se ele não quer curar, e não há nenhum tipo de evidência bíblica, ou de qualquer outro tipo, para mostrar que Deus não mais deseja realizar milagres.

Os cessacionistas alegam que querem proteger as doutrinas da suficiência e completude da Escritura. Creio que essa poderia ser uma das razões deles considerarem necessário afirmar o cessacionismo. Contudo, creio que essa não é a única razão. Há motivos ocultos por detrás dessa doutrina, tal como a incredulidade, e o medo que a incredulidade seja exposta caso eles se aventurem e afundem como Pedro, quando o Senhor o chamou para andar sobre a água. Teólogos versados não gostam de ser embaraçados. Alguns deles crucificariam antes a Cristo com suas próprias canetas, apenas para calá-lo, do que admitir que lutam com a incredulidade. Em todo caso, tem sido mostrado que a continuação das manifestações sobrenaturais do Espírito não compromete a suficiência e completude da Escritura.[2]

A afirmação da soberania de Deus significa isto: se Deus quiser fazer uma pessoa falar num idioma que ela nunca aprendeu, ele pode e fará. É simples assim. Se ele faz isso ou não é uma coisa, mas não deveria haver dúvida que é possível, mesmo hoje.

Todavia, devemos reconhecer que a questão não é resolvida afirmando-se a mera doutrina da soberania de Deus, visto que ela tem a ver com como ele usa essa soberania com relação aos dons espirituais, e o que ele revelou na Escritura sobre isso. Também, quando diz respeito aos dons espirituais, estamos nos referindo a um modo particular da manifestação do poder de Deus, a saber, por meio de instrumentos humanos como dons espirituais. Assim, é reconhecido que o assunto é complexo, embora permaneça que o fundamento para a discussão deve ser a soberania de Deus, que ele pode e fará tudo o que deseja. E em conexão com os dons espirituais, eu direi novamente que, embora haja muitos versículos na Escritura nos ordenando a usar os dons espirituais, não existe nenhuma evidência bíblica, ou qualquer outro tipo, que sequer venha a sugerir que esses tenham cessado.

~ 3 ~

Deixe-me aplicar primeiro meu argumento simples contra o cessacionismo ao caso do falar em línguas. Paulo escreve: “Não proíbam o falar em línguas” (1 Coríntios 14.39, NVI). Mas se todos os dons espirituais cessaram, então as línguas cessaram. E se as línguas cessaram, então todas as alegações de falar em línguas hoje são falsas. Se todas as alegações de falar em línguas hoje são falsas, estão devemos proibir o falar em línguas. Em outras palavras, se o cessacionismo é correto, então estamos obrigados a fazer exatamente o oposto do que Paulo ordena nesse versículo sobre a base que a situação mudou, de forma que a mesma preocupação apostólica requereria que proibíssemos todo o falar em línguas.

Contudo, transformar “Não proíbam o falar em línguas” em “Sempre proíbam o falar em línguas” requereria um argumento bíblico que fosse igualmente explícito, ou se este deve vir por dedução ou inferência, que seja um raciocínio perfeito, infalível, sem qualquer possibilidade de erro ou lugar para crítica. De outra forma, ninguém tem autoridade para dizer que o falar em línguas cessou, e ainda menos para proibir o falar em línguas.

Jesus diz: “Todo aquele que desobedecer a um desses mandamentos, ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será chamado menor no Reino dos céus; mas todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos será chamado grande no Reino dos céus” (Mateus 5.19). Deus me ordena: “Não matarás”. Se você deseja promover uma doutrina que requeira de mim mudar isso para, “sempre matarás”, então antes de eu ir para a matança, irei demandar que você produza um mandamento bíblico direto que substitua o primeiro, ou um argumento bíblico apoiando o novo mandamento ou obrigação que seja claro e perfeito, sem qualquer possibilidade de erro ou lugar para crítica. Se eu percebo sequer a mínima falha ou fraqueza, irei permanecer com o que é claro e direto, isto é, “não matarás”.

Da mesma forma, se ensino “não proíbam o falar em línguas” e você ensina “sempre proíbam o falar em línguas” (ou uma doutrina que leve a isso), então um de nós deve estar errado. Para me mostrar que sou eu quem está em erro, eu demandaria que você produza um argumento bíblico que seja tão claro, forte, perfeito e infalível como aquele que diz, “não proíbam o falar em línguas”.

Francamente, contra essa consideração, eu teria muito receio de ensinar o cessacionismo. E eu me pergunto como podemos justificar a decisão de permitir alguém permanecer no ministério, quando esta pessoa continua ensinando o cessacionismo após ouvir este simples argumento. Se ele não pode respondê-lo – se não pode produzir um argumento infalível para o cessacionismo – mas continua a ensinar a doutrina, isso pode significar apenas que ele conscientemente promove rebelião contra o Senhor.  Que direito temos, então, de nos refrear de removê-lo do ministério? Eu tenho autoridade para proteger tal pessoa da disciplina da igreja? Mas eu não sou mais forte que o Senhor. Nessas circunstâncias, o cessacionismo não é uma doutrina sobre a qual argumentar, mas um pecado do qual se arrepender. Os cristãos deveriam não somente evitar o cessacionismo, mas deveriam temer afirmá-lo, pois equivale a um desafio direto e deliberado aos mandamentos de Deus.

Você pode dizer: “Tudo bem dizer que não devemos proibir falar em línguas, mas devemos proibir a falsificação”. Como isso é relevante neste ponto? Se na tentativa de se opor à falsificação, você se opõe a todas as alegações de falar em línguas como uma questão de princípio, então você volta a desafiar o mandamento de Paulo novamente. Se você admite que não devemos proibir falar em línguas, mas devemos julgar cada caso por seu próprio mérito, eu concordaria contigo, mas então você não mais seria um cessacionista.

Agora que mencionamos a possibilidade da falsificação, a discussão finalmente chega à natureza das línguas. Atos 2 nos diz que o Espírito Santo capacitou os discípulos a falar em idiomas que eles nunca aprenderam. Esses eram idiomas humanos conhecidos e reconhecidos pelos estrangeiros que estavam presentes. Algumas vezes é suposto que foi um milagre de audição, mas os estrangeiros ouviram os discípulos falar em seus próprios idiomas porque os discípulos estavam falando no idiomas deles. A Escritura declara que eles falaram o que o Espírito lhes deu. Ela não diz que o Espírito alterou a audição da audiência. O falar em línguas em 1 Coríntios 12-14 é o mesmo tipo de manifestação que aquela em Atos 2. Não há razão para pensar de outra forma.

Visto que as expressões consistiam de idiomas humanos, como demonstrado em Atos 2 e também indicado em 1 Coríntios 13.1, há certas características que deveríamos esperar. Um idioma humano inclui um vocabulário substancial, ou palavras, que formam sentenças. Em linguagem ordinária, sentenças são marcadas por pausas e inflexões, que frequentemente determinam o significado preciso dessas sentenças. Por exemplo, uma inflexão poderia mudar o que seria entendido como uma declaração de fato numa pergunta. Dessa forma, “você irá à igreja hoje”, muda para “você irá à igreja hoje?”. Uma inflexão poderia também tornar uma declaração ordinária numa exclamação, ou mesmo numa acusação. Há muitas outras coisas que podemos mencionar sobre as características dos idiomas humanos, mas o ponto é que elas exibem traços e padrões complexos que são discerníveis.

Menciono isso para dizer o seguinte: Julgando a partir da minha experiência admitidamente limitada, a maioria das pessoas que falam em línguas provavelmente não falam em idiomas reais. Sem dúvida, minha experiência não reflete o número total daqueles que alegam falar em línguas. A alegação é que a maioria daqueles que tenho ouvido provavelmente não falam em idiomas humanos, e há provavelmente muitos outros como eles. Quando eles supostamente falam em línguas, seus sons não exibem a variedade e complexidade esperada em idiomas humanos reais. Eles com muita frequencia repetem somente uma, algumas vezes duas ou três sílabas em rápida sucessão, como “da-da-da-da-da-da-da”, or “wa-ka-la-ka-wa-ka-la-ka-wa-ka-la-ka-wa-ka-la-ka”, ou “moshimoshimoshimoshimoshi”.

Há três possíveis explicações para isso:

Primeiro, eles podem estar falando em código Morse, ou algo parecido. Contudo, mesmo o código Morse deve diferenciar seus sinais por padrões e pausas. Mas quando uma pessoa repete a mesma sílaba sessenta vezes sem nenhuma pausa, e após tomar fôlego, repete a mesma sílaba outras quarenta vezes, é difícil crer que ele esteja comunicando alguma mensagem que tenha significado. Alguém pode também objetar que supõem-se que o falar em línguas refira-se a um idioma humano ordinário, mas isso não pode resolver a questão, visto que o código Morse ou algo parecido pode se qualificar de modo concebível.

Segundo, é suposto que alguns deles poderiam estar falando no idioma dos anjos, que não poderia exibir as mesmas características que os idiomas dos homens. Contudo, mesmo que 1 Coríntios 13.1 de fato conceda a possibilidade que alguém poderia falar no idioma dos anjos, as mesmas preocupações com respeito ao código Morse se aplicam. Deve haver padrões discerníveis para diferenciar entre os sinais para que haja um idioma, pelo menos quando este é falado por meio de homens. E se o idioma dos anjos não pode ser falado por meio de homens de uma forma que haja padrões discerníveis, então eles não estão na realidade falando no idioma dos anjos, visto que aparentemente este idioma não pode ser falado por meios dos homens de forma alguma.

Terceiro, e parece ser o mais provável, aqueles que falam sem qualquer padrão discernível não estão falando em idiomas humanos, e não estão falando em línguas de forma alguma. Não estou dizendo que não existe nenhum falar em línguas genuíno hoje. Tenho afirmado com muita força que a manifestação continua de acordo com a vontade de Deus. Mas se aqueles que falam em línguas desejam exercer o dom genuíno, e se desejam ser levados à sério, eles devem satisfazer o padrão. Qualquer coisa menor que um código Morse é inaceitável, pois não seria idioma de forma alguma. E devemos acreditar que todas ou a maioria das pessoas que falam em línguas o fazem em código? Não, pois as línguas genuínas serão idiomas humanos, e soarão como idiomas humanos. Deveríamos suspeitar de qualquer pretensa manifestação de falar em línguas que careça de qualquer padrão ou complexidade discernível.

Um fator que tem contribuído para as ocorrências predominantes de línguas falsas é a negligência do fato que o falar em línguas é uma manifestação do Espírito – é algo que o Espírito impele a sair. Portanto, não é algo que um homem pode ensinar a outro. Os Pentecostais algumas vezes ensinam os novatos: “Apenas comece a falar. Diga, ‘da-da-da-da-ka-ka-sha-la-la… aí esta´! Você recebeu!” Não, nenhum deles tem coisa alguma. O dom é uma manifestação do Espírito, e quando aparece, há uma qualidade celestial, uma inteligência evidente por detrás dele. Não é algo que possa ser ensinado, praticado ou reforçado pela carne.

~ 4 ~

Recentemente, ouvi um sermão sobre a abordagem bíblica ao crescimento da igreja por John MacArthur. Ele insistiu que os métodos de crescimento de igreja que são baseados em teorias de negócio e marketing são perversos e destrutivos. Antes, ele propôs que os cristãos deveriam retornar a Atos dos Apóstolos, visto que ali o método modelado pelos primeiros discípulos é apresentado. Ele não se referia a algum modelo do Novo Testamento num sentido geral, mas foi inflexível que devemos seguir o Livro de Atos.

Então, no curso do sermão, ele ofereceu cinco princípios que tinha derivado: A igreja primitiva tinha 1) Uma mensagem transcendente, 2) Uma congregação regenerada, 3) Uma perseverança resoluta, 4) Uma pureza evidente, e 5) Uma liderança qualificada. Contudo, qualquer expositor honesto deveria ter adicionado, 6) Um ministério de falar em línguas, curar coxos, ressuscitar mortos, expelir demônios, destruir mentirosos, romper prisões, sacudir casas, amaldiçoar feiticeiros, ter visões, predizer o futuro e realizar milagres. Todas essas coisas são registradas no Livro de Atos, não são?

Sem dúvida, eu não esperava que MacArthur se embaraçasse com a verdade. Sabendo que ele é um cessacionista extremo, esperava uma menção desse item antes de rejeitá-lo, mas nada foi dito. Ele nem mesmo o mencionou. Mas eu pensei que deveríamos retornar ao padrão no Livro de Atos. Qual Livro de Atos ele estava lendo? Esse é o campeão da pregação expositiva que tantos cristãos adoram? Mas eu pensei que a pregação expositiva compeliria o pregador a abordar tópicos com os quais ele não se sente confortável, e apresentar o que ele poderia achar difícil de aceitar. O que aconteceu com isso?

Eu vou lhe dizer qual é o padrão no Livro de Atos – é o padrão de não permitir que a desonestidade e o preconceito obscureçam os ensinos claros da palavra de Deus. Se nos forçássemos a ser caridosos sem justificação, poderíamos dizer que MacArthur evitou a questão para economizar tempo de mencionar algo no qual ele não crê. Mas ele violou, no mínimo superficialmente, seu próprio padrão de pregar a Palavra de Deus como ela está escrita. É muito difícil, se não impossível, excusar alguém de mencionar os milagres quando ele mesmo, com tanto zelo e indignação, repreende a igreja por falhar em seguir o padrão no Livro de Atos.

Jesus disse que receberíamos poder quando o Espírito Santo viesse sobre nós. Assim, onde está o poder? Você que não acredita na continuação dos dons sobrenaturais: Você diz que tem o Espírito, que todos os crentes têm o Espírito, mas onde está o poder? Seu hipócrita – você finge ter isso redefinindo o conceito. E você que crê na continuação dos dons sobrenaturais: Você alega ter o Espírito, mas onde está o poder? Seu hipócrita – você insulta o Espírito implementando um padrão baixo, de forma que as falsidades e os excessos são numerados juntamente com o que é genuíno, se é que há manifestações de fato genuínas entre vocês. Quando Elias desafiou os falsos profetas, ele não tornou isso fácil para si mesmo ou para o Senhor. Ele não derramou gasolina nos sacrifícios, mas derramou muita água. Ele era da opinião que se Deus não fizesse isso, então que não fosse feito, mas se Deus fizesse, então que não houvesse dúvida que foi um milagre do Senhor, e não dos esquemas e artimanhas dos homens.

Vocês dois dizem que têm o Espírito, mas quando os discípulos foram cheios com o Espírito no Livro de Atos, houveram tamanhas manifestações de poder que fizeram os incrédulos tremer. Onde está o poder? É verdade que uma demonstração de poder divino nem sempre equivale a milagres, mas existe alguma manifestação de poder entre vocês? Qualquer uma que seja? Onde está a autoridade divina em sua pregação? Onde está a sabedoria divina em seu conselho? Onde está a ousadia divina em suas ações? Você tem seus métodos expositivos, seus diplomas de seminário, suas ensaios de ordenação, e os livros deste ou daquele teólogo em sua biblioteca. Mas você não tem o poder.

Existem aqueles que pensam que o meu ministério não tem valor. Eu não me dirigirei a eles agora. Mas se você vê qualquer fé, sabedoria, poder, vida, zelo, ousadia, qualquer autoridade de outro mundo em mim, então que seja conhecido que isto vem do Espírito de Deus. Ele me salvou e me deu um santo chamado, até mesmo a obra do ministério. E ele me deu o seu Espírito Santo, para que eu pudesse ser capacitado a viver esta nova vida, em verdade e santidade, e para realizar as obras que ele preordenou para que eu fizesse. Não estou dizendo tudo isso simplesmente porque penso que deveria, mas estou bem consciente do poder do Espírito pelo qual eu penso e trabalho, e a diferença que ele faz. Eu posso lhe dizer o que ele faz por mim, e o que sou incapaz de fazer sem ele.

Esta é a herança de todo cristão, e o equipamento necessário de todo ministro do evangelho. Deus não nos deu um espírito de fraqueza, mas um espírito de poder – poder para perceber, crer, declarar, suportar e poder para confrontar e destruir o cinismo e a incredulidade.


[1]  Coloquei em maiúsculo a palavra “Neo-Pentecostal” porque ela é usada num sentido que se refere a um tipo ou grupo de pessoas comumente associados com a crença na continuação dos dons sobrenaturais do Espírito. Ele é mais que um termo muito amplo, referindo-se a qualquer um que creia na continuação dos dons sem outras suposições atribuídas a tal pessoa. Embora eu reconheça as diferenças entre Pentecostais e Neo-Pentecostais, visto que este artigo não aborda essas diferenças, usarei os dois termos como se fossem intercambiáveis, focando-me apenas em sua similaridade em afirmar a continuidade dos dons sobrenaturais do Espírito.


[2]  Veja Don Codling, Sola Scriptura and the Revelatory Gifts

Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto (Março/2009)

Fonte: Monergismo

William Lane Craig: Redescobrindo o Jesus histórico

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Redescobrindo o Jesus histórico: Pressuposições e pretensões do Jesus Seminar

William Lane Craig

Nesta primeira parte de um artigo em duas parttes, as pressuposições e pretensões do Jesus Seminar [Seminário Jesus]† são expostas e avaliadas. Nota-se que as principais pressuposições (i) do naturalismo científico, (ii) da primazia dos evangelhos apócrifos e (iii) da necessidade de um Jesus politicamente correto são injustificadas e resultam em um retrato distorcido do Jesus histórico. Embora o Jesus Seminar faça pretensão de falar em nome da erudição na busca pelo Jesus histórico, mostra-se que, de fato, é um pequeno grupo de críticos em busca de cumprir uma pauta cultural.

Originalmente publicado como: "Rediscovering the Historical Jesus: The Presuppositions and Pressumptions of the Jesus Seminar", Faith and Mission 15 (1998): 3-15. Texto reproduzido na íntegra em: http://www.reasonablefaith.org/site/News2?page=NewsArticle&id=5206. Trad. Djair Dias Filho (set./2007).

Em 1985, um proeminente estudioso do Novo Testamento chamado Robert Funk fundou um grupo de pesquisa no Sul da Califórnia ao qual ele deu o nome de Jesus Seminar [Seminário Jesus]. O propósito ostensivo do Seminar era descobrir a pessoa histórica de Jesus de Nazaré usando os melhores métodos da crítica bíblica científica. Na visão de Funk, o Jesus histórico tem sido sobreposto por lenda, mito e metafísica cristãos e, assim, certamente não se parece com a figura de Cristo apresentada nos Evangelhos e adorada pela Igreja hoje. O alvo do Seminar é arrancar essas camadas e recuperar o Jesus autêntico, aquele que realmente viveu e ensinou.

Fazendo isso, Funk espera atear uma revolução que trará fim ao que ele considera uma era de ignorância. Ele bombardeia a organização religiosa estabelecida por “não permitir que a inteligência da alta erudição infiltre-se em pastores e sacerdotes até chegar a uma massa faminta”1. Ele vê o Jesus Seminar como um meio de denunciar aos leigos a respeito da figura mitológica que lhes ensinam a adorar e de trazê-los face a face com o verdadeiro Jesus da história.

O grau com que os Evangelhos têm supostamente distorcido o Jesus histórico é evidente na edição dos Evangelhos publicada pelo Jesus Seminar. Chamada The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos], por incluir o chamado Evangelho de Tomé, ao lado de Mateus, Marcos, Lucas e João, essa versão imprime em vermelho somente aquelas palavras que os membros do Seminar determinam como sendo autênticas, realmente faladas por Jesus. Como resultado, menos de 20% dos ditos atribuídos a Jesus são impressos em vermelho.

O Jesus real e histórico parece ter sido uma espécie de crítico social itinerante, o equivalente judeu a um filósofo cínico grego. Ele nunca reivindicou ser o Filho de Deus, nem perdoar pecados, nem inaugurar uma nova aliança entre Deus e o homem. Sua crucificação foi um acidente na história; seu cadáver foi provavelmente lançado em uma sepultura suja e rasa, na qual apodreceu ou foi comido por cães selvagens.
A essa altura, se essas conclusões estão corretas, nós que hoje somos cristãos somos vítimas de um delírio em massa. Continuar a adorar Jesus atualmente, à luz dessas conclusões, seria ou idolatria ou mitologia – idolatria caso se adore a figura meramente humana que realmente viveu; mitologia caso se adore a ficção da imaginação da Igreja. Ora, não sei quanto a você, mas eu não quero ser nem um idólatra, nem um mitólatra. Portanto, é de máxima importância avaliar se as afirmações do Jesus Seminar são verdadeiras.

Hoje, portanto, quero falar sobre as pressuposições e pretensões do Jesus Seminar.

Pressuposições do Jesus Seminar

Primeiramente, falemos de pressuposições. O que é uma pressuposição? Uma pressuposição é uma suposição que se faz antes de se observarem as evidências. Pressuposições são cruciais porque determinam como se interpretam as evidências. Deixe- me dar-lhe um exemplo. Você ouviu falar sobre o homem que pensava estar morto? Esse sujeito acreditava firmemente que estava morto, mesmo sendo um ser humano vivo, funcionando normalmente. Bem, a esposa dele persuadiu-o para visitar um psiquiatra, que em vão tentou convencê-lo de que, de fato, estava vivo. Finalmente, o psiquiatra teve um plano. Ele mostrou ao homem relatórios médicos e evidências científicas de que mortos não sangram. Após minuciosamente convencer o homem de que mortos não sangram, o psiquiatra pegou um alfinete e fez um furinho no dedo do homem. Quando o homem viu a gota de sangue respingar em seu dedo, seus olhos se esbugalharam. “Ah!”, ele gritou, “Mortos sangram, sim, afinal!”.

A crença desse homem de que estava morto foi uma pressuposição que determinou como ele interpretou as evidências. Ele se apegava tão fortemente àquela pressuposição que ela distorceu como ele observava os fatos. Ora, da mesma maneira, o Jesus Seminar tem certas pressuposições que determinam como olham para as evidências. Felizmente, o Jesus Seminar deixou abundantemente claras algumas de suas pressuposições.

Naturalismo

A pressuposição número um do Seminar é o antissobrenaturalismo ou, mais simplificadamente, o naturalismo. Naturalismo é a visão segundo a qual todo evento no mundo tem uma causa natural. Não há eventos com causas sobrenaturais. Em outras palavras, milagres não podem acontecer.

Ora, essa pressuposição constitui absoluto divisor de águas para o estudo dos Evangelhos. Caso se pressuponha o naturalismo, então coisas como a encarnação, o nascimento virginal, os milagres de Jesus e Sua ressurreição são jogados pela janela antes mesmo que se sente à mesa para se observarem as evidências. Como eventos sobrenaturais, não podem ser históricos. Mas caso a pessoa esteja ao menos aberta ao sobrenaturalismo, então esses eventos não podem ser excluídos de antemão. Deve-se estar aberto para observar honestamente as evidências de que eles ocorreram. De fato, caso não se pressuponha o naturalismo, então os Evangelhos vêm à tona parecendo fontes históricas muito boas sobre a vida de Jesus.

R. T. France, estudioso neotestamentário britânico, escreveu:
No nível de seu caráter literário e histórico, temos boa razão para tratar seriamente os Evangelhos como fonte de informação sobre a vida e o ensino de Jesus... Realmente, vários historiadores antigos se considerariam sortudos por terem quatro relatos responsáveis [como os Evangelhos], escritos dentro de uma ou duas gerações a partir dos eventos, e preservados em tal riqueza de evidências de manuscritos primitivos. Além desse ponto, a decisão de aceitar o registro que oferecem é provavelmente influenciada mais pela abertura a uma visão de mundo sobrenaturalista do que estritamente por considerações históricas.2
Em outras palavras, o ceticismo quanto aos Evangelhos não se baseia na história, mas na pressuposição do naturalismo. A Introdução a The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos] declara:

A controvérsia religiosa contemporânea volta-se para a questão de se a visão de mundo refletida na Bíblia pode ser levada adiante nesta era científica e sustentada como um artigo de fé ... o Cristo do credo e do dogma ... não pode mais comandar a aprovação daqueles que têm visto os céus através do telescópio de Galileu.3
Mas por que, poderíamos perguntar, é impossível, em uma era científica, acreditar em um Cristo sobrenatural? Afinal, diversos bons cientistas são cristãos e a física contemporânea mostra-se bastante aberta à possibilidade de realidades que estão fora do domínio da física. Que justificação existe para o antissobrenaturalismo?

Nesse ponto, as coisas ficam realmente interessantes. De acordo com o Jesus Seminar, o Jesus histórico por definição deve ser uma figura não-sobrenatural. É aí que apelam para D. F. Strauss, o crítico bíblico alemão do século XIX. O livro de Strauss The Life of Jesus, Critically Examined [A vida de Jesus, criticamente examinada] baseou-se abertamente na filosofia do naturalismo. Segundo Strauss, Deus não age diretamente no mundo; Ele age apenas indiretamente, através de causas naturais. No que diz respeito à ressurreição, Strauss declara que o ressuscitar de Jesus por Deus “é irreconciliável com idéias ilustradas da relação de Deus com o mundo”4.

Observe atentamente, então, o que o Jesus Seminar diz sobre Strauss:
Strauss distinguiu nos Evangelhos o que ele chamou o “mítico” (por ele definido como qualquer coisa lendária ou sobrenatural) do histórico ... A escolha que Strauss admitiu em sua avaliação aos Evangelhos foi entre o Jesus sobrenatural – o Cristo da fé – e o Jesus histórico.5
Qualquer coisa sobrenatural é, por definição, anistórica. Nenhum argumento é dado; somente se define dessa maneira. Assim, temos um divórcio radical entre o Cristo da fé, ou o Jesus sobrenatural, e o Jesus real e histórico. Ora, o Jesus Seminar dá um visível endosso à distinção de Strauss: eles vêem que a distinção entre o Jesus histórico e o Cristo da fé é “o primeiro pilar da sabedoria acadêmica”6.

Mas, a essa altura, toda a busca pelo Jesus histórico se torna uma charada. Caso se inicie pressupondo o naturalismo, então, é claro, termina-se com um Jesus puramente natural! Esse Jesus reconstruído e naturalista não se baseia em evidências, mas na definição. O incrível é que o Jesus Seminar não faz qualquer tentativa para defender tal naturalismo; apenas o pressupõe. Mas essa pressuposição é completamente injustificada. Desde que a existência de Deus seja mesmo possível, então temos de estar abertos à possibilidade de que Ele tem agido miraculosamente no Universo. Somente se existe uma prova a favor do ateísmo pode-se justificar o pensamento de que milagres são impossíveis.

Isso levanta exatamente a questão de se os parceiros do Jesus Seminar sequer acreditam que Deus realmente existe. Em um debate com John Dominic Crossan, o co- presidente do Jesus Seminar, eu levantei exatamente essa questão. Veja atentamente como ele responde:

Craig: Essa distinção que você faz entre declarações de fé e declarações de fatos me perturba. Eu gostaria de saber o seguinte: o que você acha da declaração de que “Deus existe”? É uma declaração de fé ou de um fato?
Crossan: É uma declaração de fé para todos os que a fazem.
Craig: Quer dizer que, de acordo com sua visão, então, falando factualmente, não é verdade que Deus existe.
Crossan: Essa não seria uma maneira muito agradável de expressar isso. Deixe-me expressar-me dessa maneira a você. O que eu estou dizendo aqui é para tentar levar a fé seriamente. Entendam que o dr. Craig quer equacionar fé e fato. Há pessoas neste mundo que não acreditam que Deus existe. Eu entendo isso. Eu chego a pensar que eles estão errados, mas isso não se torna nem mais um pouco um ato de fé. Eles estão tendo um ato de fé em algo mais...
Craig: Mas se a existência de Deus é uma declaração de fé, e não uma declaração de um fato, isso quer dizer que a existência de Deus é simplesmente uma concepção interpretativa que uma mente em particular – um crente – coloca no Universo. Mas no Universo não existe um ser como Deus. Isto é, isso é simplesmente uma interpretação que um crente coloca dentro do Universo. Parece-me que, em um nível da realidade, independentemente da consciência humana, sua cosmovisão é realmente ateísta e que a religião é simplesmente uma estrutura interpretativa que indivíduos em particular colocam no mundo, mas nenhuma dessas é factual e objetivamente verdadeira...
Crossan: Não, eu diria que o que você está tentando fazer é imaginar o mundo sem nós. Ora, infelizmente, não posso fazer isso. Se você fosse me pedir (o que acabou de fazer) para considerar a partir da fé como Deus seria se nenhum ser humano existisse, seria como me perguntar: “Será que eu ficaria incomodado se não tivesse sido concebido?”. Eu realmente não sei como responder a essa questão.
Craig: É claro que você sabe!
Crossan: Espere um minuto! Nós só conhecemos Deus do modo como Deus revelou-nos Deus; isso é tudo que poderíamos saber em qualquer religião.
Craig: Durante a era jurássica, quando não existiam seres humanos, Deus existia?
Crossan: Pergunta insignificante.
Craig: Claramente, essa pergunta não é insignificante. É uma pergunta factual. Existia um Ser que era o Criador e Sustentador do Universo durante aquele período de tempo em que nenhum ser humano existia? Parece-me que, pela sua visão, seria dito um “Não”.
Crossan: Bem, eu provavelmente prefiriria dizer “Não”, porque o que você está fazendo é tentar se colocar na posição de Deus e perguntar: “Como é Deus à parte da revelação? Como é Deus à parte da fé?” Não sei se você pode fazer isso. Você pode fazer isso, suponho, mas não sei se teria realmente algum sentido.7

Parece muito óbvio que o dr. Crossan nem mesmo afirmaria que realmente há um Deus que existe fora da imaginação humana. Bem, se Deus é apenas uma projeção da consciência humana, se realmente não há ninguém “lá fora”, além daqui, então é claro que é impossível que Deus tenha agido sobrenaturalmente no mundo, como os Evangelhos afirmam. Então, a primeira pressuposição do Jesus Seminar, uma pressuposição à qual não fazem qualquer tentativa para justificar, é naturalismo ou talvez até ateísmo. Rejeite essa pressuposição e toda a construção entra em colapso.

Primazia dos Evangelhos Apócrifos

Ora, se o Jesus histórico não é o Jesus dos Evangelhos, o Jesus sobrenatural, então como estudiosos céticos entendem quem o Jesus histórico realmente era? Bem, isso leva à segunda pressuposição que gostaria de discutir, a saber, críticos céticos pressupõem que nossas fontes mais primárias para a vida de Jesus não são os Evangelhos, mas em vez disso escritos fora do Novo Testamento, especificamente os chamados evangelhos apócrifos. Esses são evangelhos forjados sob os nomes dos apóstolos, como o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro, o Evangelho de Filipe, e assim por diante. Diz-se que esses escritos extrabíblicos são a chave para se reconstruir corretamente o Jesus histórico.

O professor Luke Johnson, distinto estudioso de Novo Testamento na Universidade Emory, aponta que toda a recente enxurrada de livros reivindicando revelar o Jesus verdadeiro seguem o mesmo padrão previsível:

1. O livro começa fazendo alardes das credenciais acadêmicas do autor e sua pesquisa prodigiosa.

2. O autor afirma oferecer uma nova, e talvez até mesmo reprimida, interpretação de quem Jesus realmente era.

3. Diz-se que a verdade acerca de Jesus é descoberta por meio de fontes fora da Bíblia, as quais nos capacitam a ler os Evangelhos de uma nova maneira que está em desacordo com o sentido literal, ao pé da letra.

4. Essa nova interpretação é provocante e até erótica, dizendo, por exemplo, que Jesus casou- se com Maria Madalena ou era o líder de uma seita alucinógena ou um filósofo cínico andarilho.

5. Implica-se que as crenças cristãs tradicionais são, portanto, solapadas e precisam ser revisadas.8

Se você ouvir falar de livros com esse padrão familiar, sua antena crítica deve automaticamente se levantar. Você está prestes a ser ludibriado. Pois o fato é que não há fonte fora da Bíblia que ponha em questão o retrato de Jesus pintado nos Evangelhos.

Deixe-me tomar apenas alguns exemplos do que são fontes favoritas do Jesus Seminar. Primeiramente, o chamado Evangelho de Tomé. O Jesus Seminar considera-o uma fonte tão importante que o inclui ao lado de Mateus, Marcos, Lucas e João em sua edição de The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos].

Ora, o que é o Evangelho de Tomé? É um escrito que foi descoberto no Egito logo após a Segunda Guerra Mundial. Era parte de uma coleção de documentos gnósticos. O Gnosticismo foi uma antiga filosofia do Oriente Próximo a qual sustentava que o mundo físico é mau e a esfera espiritual é boa. A salvação vem através do conhecimento secreto da esfera espiritual, o qual libera de seu encarceramento no mundo físico a alma. O chamado Evangelho de Tomé é anuviado com a filosofia gnóstica. Era, sem dúvida, parte da literatura da seita gnóstica, muito semelhante a seitas da Nova Era em nossos dias. Fragmentos, em grego, do Evangelho de Tomé que remontam a 200 d.C. foram encontrados, e a maioria dos estudiosos dataria o original como tendo sido escrito na última metade do século II d.C. Uma evidência desse fato é que o Evangelho de Tomé usa vocabulário proveniente de traduções e harmonias dos Quatro Evangelhos feitas no século II.

Assim, a vasta maioria de estudiosos, atualmente, considera o Evangelho de Tomé como uma fonte derivada do século II d.C. e que reflete a visão do Gnosticismo cristão.

Inacreditavelmente, contudo, os parceiros do Jesus Seminar consideram o Evangelho de Tomé como uma fonte primária primitiva concernente a Jesus e a utiliza para revisar o retrato de Jesus encontrado nos Evangelhos. Ora, que razões eles têm para datar o evangelho de Tomé como tão primitivo? Incrivelmente, toda a abordagem deles a essa questão é um raciocínio em círculo. Ele funciona assim:

1. O Evangelho de Tomé é uma fonte primária primitiva.
“Como você sabe?”

2. Porque nenhum dito apocalíptico é encontrado no Evangelho de Tomé.
“Por que isso é evidência para uma data primitiva?”

3. Isso é evidência para uma data primitiva porque Jesus não estava envolvido na Apocalíptica.
“Como você sabe que Ele não estava envolvido nisso?”

4. Porque o Evangelho de Tomé prova que Ele não estava.
“Por que acreditar no que o Evangelho de Tomé diz?”

1. O Evangelho de Tomé é uma fonte primária primitiva.

Desse modo, Howard Clark Kee, da Universidade de Boston, declara esse procedimento como “um triunfo do raciocínio circular”9. O estudioso neotestamentário britânico Thomas Wright diz que isso é como o Ursinho Puff seguindo seu próprio rastro na neve, ao redor de uma moita, e cada vez que vê mais rastros toma-os como evidência de que sua presa é até mais numerosa e mais real do que o que ele pensou antes!10 Não é de admirar que os parceiros do Jesus Seminar não têm sido capazes de convencer, por meio de argumentos como esse, muitos dos seus colegas!

Um segundo exemplo é o chamado Evangelho de Pedro. Embora esse escrito tenha sido condenado como espúrio, pelos primitivos Pais da Igreja, o texto real nos era desconhecido até que uma cópia foi descoberta num túmulo egípcio em 1886. Semelhantemente ao Evangelho de Tomé, traz as marcas da influência gnóstica e usa unicamente vocabulário do século II, de modo que os estudiosos unanimemente o consideram como um escrito do século II.

Apesar disso, John Dominic Crossan, o copresidente do Jesus Seminar, baseia toda sua reconstrução da morte e sepultamento de Jesus em sua afirmação de que o Evangelho de Pedro realmente contém a mais antiga fonte primária sobre Jesus e que os Quatro Evangelhos são todos baseados nela. Portanto, diz ele, os Evangelhos não têm valor histórico porque não têm qualquer fonte de informação sobre a morte de Jesus a não ser o relato do Evangelho de Pedro. Mesmo que o próprio Evangelho de Pedro descreva a ressurreição de Jesus, o naturalismo de Crossan o previne de acreditar nesse evento. Mas, com os Evangelhos bíblicos fora de seu caminho, Crossan pode afirmar que o Evangelho de Pedro é apenas lendário e que não há testemunho confirmatório à ressurreição de Jesus.

Um dos aspectos mais estranhos do raciocínio de Crossan é que ele parece ter se esquecido completamente do Apóstolo Paulo. Mesmo se Crossan estivesse correto quanto ao Evangelho de Pedro ser primário, o testemunho deste ainda seria independentemente confirmado pelos escritos de Paulo, que se refere ao sepultamento de Jesus e até lista as testemunhas das aparições da ressurreição de Jesus. Assim, mesmo se o relato da ressurreição no Evangelho de Pedro fosse fundamental para os Quatro Evangelhos, não há razão histórica para negar a ressurreição.

Porém, de fato, a teoria de Crossan a respeito da primazia do relato do Evangelho de Pedro é virtualmente rejeitada universalmente pelos estudiosos de Novo Testamento. O proeminente estudioso canadense Ben Meyer chamou os argumentos de Crossan de “excêntricos e implausíveis”11. Até mesmo Helmut Koester, da Universidade Harvard, rejeita o raciocínio de Crossan como sendo “seriamente defeituoso”12. Não existe qualquer sinal de dependência literária dos Quatro Evangelhos com relação à narrativa do Evangelho de Pedro. A conclusão óbvia é que o Evangelho de Pedro é baseado nos Quatro Evangelhos, e não o contrário. Thomas Wright resume isso tudo declarando que a hipótese de Crossan “ainda não foi aceita por qualquer outro estudioso sério” e a data e origem sugeridas por Crossan “são puramente imaginárias”13.

O que eu disse sobre o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Pedro poderia ser dito sobre todos os outros evangelhos apócrifos, também. De acordo com John Meier, proeminente crítico neotestamentário norte-americano, a idéia de que os evangelhos apócrifos fornecem-nos novas informações acerca de Jesus é “em grande medida fantasia”14. O fato é que esses escritos são tardios, escritos secundários moldados pela teologia do século II e pela posterior. Nas palavras do Professor Johnson, isso significa que, a despeito de toda publicidade, “os escritos do Novo Testamento permanecem como nossas melhores testemunhas históricas” para a vida de Jesus15.

Religião Politicamente Correta

A terceira pressuposição do Jesus Seminar é que a religião em geral e Jesus em particular devem ser politicamente corretos. Em nossos dias de relativismo e pluralismo religiosos, é politicamente incorreto reivindicar que uma religião é absolutamente verdadeira. Todas as religiões têm de ser, igualmente, caminhos válidos até Deus. Mas caso se insista em ser politicamente correto, então de alguma maneira deve-se tirar Jesus do caminho. Pois suas afirmações radicais e pessoais de ser o singular Filho de Deus, a revelação absoluta de Deus Pai, o único mediador entre Deus e o homem, são francamente embaraçosas e ofensivas para a mentalidade politicamente correta. O Jesus dos Evangelhos não é politicamente correto!

O desejo de ter uma religião politicamente correta e, em particular, um Jesus politicamente correto, distorce o julgamento histórico do Jesus Seminar. Eles desconsideram como sendo anistórico qualquer aspecto de Jesus que acham ser politicamente incorreto. Julgamentos históricos estão, pois, sendo feitos, não com base nas evidências, mas com base na polidez política.

Em lugar algum esse procedimento é mais evidente do que na obra de Marcus Borg, um dos membros mais célebres do Seminar. Como adolescente, Borg perdeu sua fé em Deus, em Cristo e na Bíblia. Mas alguns anos após formar-se no seminário, ele teve um número de experiências místicas que lhe deram um novo conceito sobre Deus. Ele diz: “Percebi que Deus não se refere a um ser sobrenatural ‘lá fora’ [...] Antes, Deus se refere ao sagrado no centro da existência, o santo mistério que está ao redor e dentro de nós”16. Ora, se essas palavras são entoadas da maneira certa, podem soar muito significativas e profundas. Mas são raquíticas em seu entendimento de Deus. O que Borg quer dizer quando afirma que “Deus é mais do que tudo e, apesar disso, tudo está em Deus”17?

De qualquer forma, Borg então reinterpreta Jesus à luz de suas próprias experiências místicas. Se imaginamos Jesus dessa maneira, diz Borg, isso “solapa uma crença cristã amplamente difundida segundo a qual Jesus é singular, o que é comumente ligado à noção de que o Cristianismo é exclusivamente verdadeiro e que ‘Jesus é o único caminho’”18. Nesse ponto, parece muito óbvio que o desejo de Borg por ter uma religião politicamente correta determina sua reconstrução do Jesus histórico. Como aponta Douglas Geivett, a rejeição de Borg da figura tradicional de Jesus tem “menos a ver com pesquisa histórica sobre Jesus e mais a ver com as próprias crenças de Borg sobre Deus”19.

O resultado de se permitir que a polidez política dite o que é e não é histórico é que se acaba criando um anacronismo: um Jesus politicamente correto, de fins do século XX, é apenas um reflexo de si mesmo [e não de Jesus]. Assim, o Jesus de Borg mostra ser um liberal social, dirigido por uma “política de compaixão”, a fim de defender os direitos das mulheres e dos pobres contra uma situação social opressiva. O caráter compassivo de Jesus, diz Borg, também implica a defesa dos direitos dos gays e a provisão de saúde universal imediatamente! É difícil discordar do veredicto de Howard Kee: os parceiros do Jesus Seminar sucumbiram à tentação de criar Jesus à sua própria imagem20. Eles olharam para o longo poço da história e viram seus próprios rostos refletidos no fundo dele21.

Em suma, as conclusões do Jesus Seminar se baseiam não tanto em evidências, quanto nas pressuposições do naturalismo, na primazia dos evangelhos apócrifos e na religião politicamente correta. Não há justificação para qualquer dessas pressuposições. Rejeite-as, e todo o Jesus reconstruído deles colapsa em ruína.

Pretensões do Jesus Seminar

Bem, a essa altura, você pode estar se perguntando como, nesse mundo, a erudição do Novo Testamento poderia ser baseada em fundações tão frágeis como essas. De fato, não o é. Isso me leva para o meu segundo ponto principal: as pretensões do Jesus Seminar.

O Jesus Seminar se retrata para a mídia como a voz representativa da erudição do Novo Testamento hoje, passando por cima das cabeças dos clérigos a fim de contar a leigos sem desconfiança, que têm sido ludibriados pela Igreja, como Jesus realmente era. Apenas uma evidência dessa pretensão é que eles nomearam a tradução deles dos Evangelhos “A Versão do Acadêmico” [The Scholar’s Version] – como se as equipes de linguistas e especialistas que produziram traduções tais quais a RSV [Revised Standard Version], a NEB [New English Bible] ou a NIV [New International Version]‡ não fossem de acadêmicos! Eles são muito preocupados em retratar-se como historiadores desinteressados, e não teólogos. Essa é a visão da mídia sobre o Jesus Seminar – um grande grupo de historiadores, acadêmicos representativos, falando a verdade sem tendências. Essas são as pretensões. Qual é a realidade?

Bem, a realidade vem a ser muito diferente. A reivindicação deles de terem 200 acadêmicos no Seminar é grosseiramente inflacionada: essa cifra inclui qualquer um que, de alguma maneira, esteve envolvido nas atividades do Seminar, como estar numa lista de correpondências. O número real de participantes regulares é somente de aproximadamente 40. E quanto às credenciais acadêmicas dos membros? Dos 74 listados na sua publicação The Five Gospels, somente 14 seriam figuras importantes no campo dos estudos de Novo Testamento. Mais da metade é de basicamente desconhecidos, que publicaram somente dois ou três artigos. Dezoito dos membros não publicaram absolutamente nada sobre estudos do Novo Testamento! A maioria tem posições acadêmicas relativamente inexpressivas – por exemplo, ensinar na faculdade de uma comunidade. De acordo com Johnson, “Os números, sozinhos, sugerem que qualquer reivindicação de representar ‘erudição’ ou a ‘academia’ é ridícula”22.

Realmente, é a reivindicação do Seminar de representar o consenso da erudição que tem deveras cutucado os estudiosos de Novo Testamento. E eu quero enfatizar que não estou falando sobre as reações de conversadores ou evangélicos: estou falando sobre a ampla gama de estudiosos de Novo Testamento. Por exemplo, Howard Kee denuncia o Jesus Seminar como “uma desgraça acadêmica”, e diz que as conclusões deles são “prejudiciais” e “periféricas”, não “um desenvolvimento substancial no estudo acadêmico responsável sobre o Jesus histórico”23.

De acordo com Johnson, a verdadeira pauta do Jesus Seminar não é acadêmica, mas social. Ele declara:
A pauta do Seminar não é erudição desinteressada, mas uma missão social contra a maneira como a igreja é dominada pela teologia evangélica – isto é, uma teologia enfocada na verdade literal dos Evangelhos. É importante notar, desde o princípio, que Robert Funk não concebe o Seminar como dando uma contribuição à erudição, mas como cumprindo uma missão cultural. Os inimigos declarados do Seminar não são simplesmente fundamentalistas ou a Convenção Batista do Sul [Southern Baptist Convention], mas todos aqueles que contribuem para qualquer entendimento tradicional de Jesus como Senhor Ressurreto e Filho de Deus.24
É essa pauta sociocultural que determina, de antemão, as conclusões do Jesus Seminar. Longe de representar o consenso da erudição de Novo Testamento, o Seminar na verdade representa as visões de uma minoria radical da periferia da ala esquerda da erudição bíblica. Não é de admirar que Jacob Neusner, um dos mais proeminentes teólogos judeus de nossos dias, tenha dito que o Jesus Seminar é ou a maior farsa acadêmica desde o Homem de Piltdown ou, senão, representa a falência dos estudos neotestamentários!25

Conclusão

Felizmente, a corrente principal da erudição neotestamentária tem se movido para uma direção muito diferente da periferia da ala esquerda representada pelo Jesus Seminar. Passados são os dias em que Jesus era tratado como uma figura da mitologia grega e romana. Passados são os dias em que Seus milagres eram desconsiderados como sendo contos de fada baseados em histórias de heróis mitológicos. Passados são os dias em que seu túmulo vazio e as aparições da ressurreição eram depreciados como sendo lendas ou alucinações. Atualmente, concorda-se amplamente que os Evangelhos são fontes históricas de valor com relação à vida de Jesus e que o contexto adequado para se compreenderem os Evangelhos não é a mitologia, mas o Judaísmo Palestino. Concorda-se amplamente que o Jesus histórico colocou-se e falou como estando no lugar do próprio Deus, proclamou o advento do Reino de Deus, e realizou ministério de operação de milagres e exorcismos, como sinais do Reino. Acho tremendamente gratificante ver que o movimento da erudição neotestamentária como um todo está em direção a confirmar com o entendimento tradicional de Jesus conforme retratado nos Evangelhos. Em particular, minha própria pesquisa concernente à ressurreição de Jesus me convenceu mais do que nunca que isso foi um evento histórico, verificável pelas evidências. O cristão pode estar confiante de que os fundamentos históricos de sua fé permanecem seguros. Você pode apostar sua vida nisso.

Notas finais

1 Robert Funk, "The Issue of Jesus", Forum 1 (1985): 8.

2 R. T. France, "The Gospels as Historical Sources for Jesus, the Founder of Christianity", Truth 1 (1985): 86.

3 R. W. Funk, R. W. Hoover, and the Jesus Seminar, "Introduction" a The Five Gospels (Nova Iorque: Macmillan, 1993), p. 2.

4 David Friedrich Strauß, The Life of Jesus, Critically Examined, trad. George Eliot, ed. com Introdução por Peter C. Hodgson, Lives of Jesus Series (Londres: SCM Press, 1973), p. 736.

5 Funk, et. al., "Introduction", p. 3.

6 Ibid., pp. 2–3.

7 William Lane Craig e John Dominic Crossan, Will the Real Jesus Please Stand Up?, ed. Paul Copan, com Respostas de Ben Witherington III, Craig Blomberg, Marcus Borg e Robert Miller (Grand Rapids, Mich: Baker Bookhouse, 1998).

8 Luke Timothy Johnson, The Real Jesus (São Francisco: Harper San Francisco, 1996), p. 31.

9 Howard Clark Kee, "A Century of Quests of the Culturally Compatible Jesus", Theology Today 52 (1995): 22.

10 N. T. Wright, "Taking the Text with Her Pleasure", Theology 96 (1993): 307.

11 Ben Meyer, nota crítica a The Historical Jesus, de John Dominic Crossan, Catholic Biblical Quarterly 55 (1993): 575.

12 Helmut Koester, Ancient Christian Gospels (Londres: SCM, 1990), p. 220.

13 N. T. Wright, Jesus and the Victory of God (Minneapolis: Fortress Press, 1996), p. 49.

14 John P. Meier, A Marginal Jew, vol. 2: Mentor, Message and Miracles, Anchor Bible Reference Library (Nova Iorque: Doubleday, 1994), p. 5. 

15 Johnson, Real Jesus, p. 89.

16 Marcus Borg, Meeting Jesus Again for the First Time (São Francisco: Harper San Francisco, 1994), p. 14.

17 Ibid.

18 Ibid., p. 37.

19 R. Douglas Geivett, "Is Jesus the Only Way?" in Jesus under Fire, ed. J. P. Moreland e M. J. Wilkins (Grand Rapids, Mich.: Zondervan, 1995), p. 187. 

20 Kee, "Century of Quests", p. 26.

21 Uma memorável caracterização, feita por George Tyrell, sobre a escola da Antiga Busca pelo Jesus Histórico, Christianity at the Crossroads (Londres: Longman, Green, & Co., 1909), p. 44.

22 Johnson, Real Jesus, pp. 4–5.

23 Howard Clark Kee, Editorial: "Controversial Jesus Seminar", Los Angeles Times, 12 March 1991, p. B6; idem, "Century of Quests," p. 28.

24 Johnson, Real Jesus, p. 6.

25 Jacob Neusner, citado por Richard N. Ostling, "Jesus Christ, Plain and Simple", Time (January 10, 1994), p. 39.

† A importância deste artigo para o cenário brasileiro não pode ser diminuída. Embora o Jesus Seminar não seja alardeado na mídia deste país – diferentemente do que ocorre nos E.U.A. –, é inegável a influência do pensamento de seus membros em diversas revistas, jornais e documentários televisivos aqui difundidos. Não bastando tal injustificada tendência popular à posição do Seminar, vêem-se seus ensinos repercutindo em ambientes acadêmicos. Este tradutor pôde ouvir, dos lábios de diretor de certo seminário pentecostal (pós- graduado em uma prestigiada instituição teológica de orientação liberal), declaração segundo a qual John Dominic Crossan – um dos decanos do Seminar – seria a autoridade contemporânea em assuntos concernentes ao Jesus histórico. Enquanto isso, importantes estudiosos que reconhecem a confiabilidade dos Evangelhos em questões históricas – como N. T. Wright, Gary Habermas, Craig Blomberg ou mesmo William Lane Craig, autor do presente artigo – são esquecidos ou sequer conhecidos. Mal se publicam suas obras em língua portuguesa; por sua vez, os textos de alguns notáveis membros do Seminar são facilmente encontrados, no vernáculo, nas livrarias nacionais. A esperança desta tradução é pôr a lume a perspectiva crítica aos (aparentemente revolucionários) críticos da visão evangélica de Cristo, propondo ao contexto brasileiro uma alternativa conservadora academicamente respeitável e razoável quanto à “busca do Jesus histórico”. (Nota do Tradutor)

‡ Em Língua Portuguesa, seria possível pensar na NVI (Nova Versão Internacional), na Bíblia de Jerusalém e nas diversas edições baseadas na tradução de João Ferreira de Almeida. (N. do T.)

© William Lane Craig

Redescobrindo o Jesus histórico: as evidências a favor de Jesus

William Lane Craig

Cinco razões são apresentados para se pensar que críticos que aceitam a credibilidade histórica dos relatos sobre Jesus, no Evangelho, não possuem um especial ônus da prova relativo aos críticos mais céticos. Em seguida, a historicidade de alguns aspectos específicos da vida de Jesus é abordada, incluindo Seu próprio conceito radical de ser o divino Filho de Deus, Seu papel como realizador de milagres e Sua ressurreição dentre os mortos.

Originalmente publicado como: "Rediscovering the Historical Jesus: The Evidence for Jesus", Faith and Mission 15 (1998): 16-26. Texto reproduzido na íntegra em: reasonablefaith.org/site/News2?page=NewsArticle&id=5207. Trad. Djair Dias Filho (abr.- maio/2009).

No último texto, vimos que os documentos do Novo Testamento são as fontes históricas mais importantes para Jesus de Nazaré. Os chamados evangelhos apócrifos são falsificações que surgiram muito depois e são, na maior parte, elaborações a partir dos Quatro Evangelhos do Novo Testamento. 

Isso não significa que não existem fontes além da Bíblia que se referem a Jesus. Existem. Faz-se referência a Ele em escritos pagãos, judaicos e cristãos, todos fora do Novo Testamento. O historiador judeu Josefo é especialmente interessante. Nas páginas de suas obras, pode-se ler sobre personagens neotestamentárias como os sumos sacerdotes Anás e Caifás, o governador romano Pôncio Pilatos, o rei Herodes, João Batista, e até mesmo o próprio Jesus e seu irmão Tiago. Tem havido, também, interessantes descobertas arqueológicas igualmente reportando-se aos Evangelhos. Por exemplo, em 1961, a primeira evidência arqueológica concernente a Pilatos foi desenterrada na cidade de Cesaréia; era uma inscrição de uma dedicação contendo o nome e o título de Pilatos. Ainda mais recentemente, em 1990, o verdadeiro túmulo de Caifás, o sumo sacerdote que presidiu ao julgamento de Jesus, foi descoberto ao sul de Jerusalém. Realmente, o túmulo sob a Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém é, com toda probabilidade, o túmulo em que o próprio Jesus foi colocado por José de Arimatéia, após a crucificação. De acordo com Luke Johnson, estudioso neotestamentário da Universidade Emory,
Até mesmo o historiador mais crítico pode confiantemente afirmar que um judeu chamado Jesus viveu como um mestre e operador de milagres na Palestina, durante o reinado de Tibério, foi executado por crucificação sob o prefeito Pôncio Pilatos e continuou a ter seguidores após sua morte.1
Ainda assim, se queremos quaisquer detalhes sobre a vida e os ensinamentos de Jesus, devemos nos voltar para o Novo Testamento. Fontes extrabíblicas confirmam o que lemos nos Evangelhos, mas não nos dizem realmente algo novo. A questão, portanto, deve ser: quão confiáveis historicamente são os documentos do Novo Testamento?

Ônus da prova

Aqui, confrontamos a questão crucial do ônus da prova. Deveríamos supor que os Evangelhos são confiáveis a menos que sejam provados como não confiáveis? Ou deveríamos supor que os Evangelhos não são confiáveis até que sejam provados como confiáveis? Eles são inocentes até que se prove serem culpados ou culpados até que se prove serem inocentes? Os estudiosos céticos quase sempre supõem que os Evangelhos são culpados até que se prove serem inocentes, isto é, consideram que os Evangelhos não são confiáveis a menos e até que se prove que estão corretos quanto a algum fato particular. Não estou exagerando: esse é realmente o procedimento dos críticos céticos.

Mas eu quero listar cinco razões de por que eu penso que deveríamos supor que os Evangelhos são confiáveis até que se prove estarem errados:

1. Não houve tempo suficiente para influências lendárias eliminarem os fatos históricos. O intervalo de tempo entre os próprios eventos e o registro deles nos Evangelhos é muito curto para ter permitido que a memória do que tinha ou não acontecido realmente fosse apagada.

2. Os Evangelhos não são análogos a contos de fada ou "lendas urbanas" contemporâneas. Contos como os de Paul Bunyan e Pecos Bill ou lendas urbanas contemporâneas como a do "caroneiro fantasma" raramente concernem a indivíduos históricos individuais e são, assim, não análogos às narrativas evangélicas.

3. A transmissão judaica de tradições sagradas era altamente desenvolvida e confiável. Em uma cultura oral como aquela da Palestina do século I, a habilidade de memorizar e reter longos tratados de tradição oral era altamente prezada e desenvolvida. Desde pequenas, as crianças no lar, no ensino primário, e na sinagoga eram ensinadas a memorizar fielmente a tradição sagrada. Os discípulos teriam exercitado cuidado semelhante com os ensinos de Jesus.

4. Havia significantes restrições ao embelezamento de tradições sobre Jesus, como, por exemplo, a presença de testemunhas oculares e a supervisão dos apóstolos. Uma vez que aqueles que tinham visto e ouvido Jesus continuaram a viver e a tradição sobre Jesus permaneceu sob a supervisão dos apóstolos, esses fatores atuariam como uma verificação natural às tendências a elaborar os fatos em uma direção contrária à preservada por aqueles que tinham conhecido Jesus.

5. Os escritores dos Evangelhos tinham um comprovado registro de confiabilidade histórica.
Não tenho tempo suficiente para falar sobre todos esses pontos. Então, deixe-me dizer algo sobre o primeiro e o último.

1. Não houve tempo suficiente para influências lendárias eliminarem os fatos históricos. Nenhum estudioso moderno pensa nos Evangelhos como mentiras descaradas, o resultado de uma conspiração em massa. O único lugar em que se pode encontrar tais teorias da conspiração é em literatura sensacionalista popular ou em antiga propaganda por detrás da Cortina de Ferro. Quando se lêem as páginas do Novo Testamento, não há dúvida de que aquelas pessoas sinceramente acreditavam na verdade do que proclamavam. Em vez disso, desde o tempo de D. F. Strauss, estudiosos céticos têm explicado os Evangelhos como lendas. Como a brincadeira do telefone sem-fio, enquanto as histórias sobre Jesus foram transmitidas ao longo das décadas, elas foram desordenadas e exageradas e mitologizadas, até que os fatos originais fossem todos perdidos. O sábio andarilho judeu foi transformado no divino Filho de Deus.

Um dos principais problemas com a hipótese da lenda, contudo, que quase nunca é endereçado por críticos céticos, é que o tempo entre a morte de Jesus e a redação dos Evangelhos é simplesmente muito curto para que isso acontecesse. Esse ponto foi bem explicado por A. N. Sherwin-White, em seu livro Roman Society and Roman Law in the New Testament2 [Sociedade Romana e Lei Romana no Novo Testamento]. O doutor Sherwin-White não é teólogo; ele é um historiador profissional sobre as épocas anteriores e contemporâneas a Jesus. De acordo com Sherwin-White, as fontes para a história romana e grega são freqüentemente tendenciosas e deslocadas uma ou duas gerações ou mesmo séculos em relação aos eventos que registram. Apesar disso, diz ele, os historiadores reconstroem com confiança o curso da história romana e grega. Por exemplo, as duas mais primitivas biografias de Alexandre Magno foram escritas por Ariano e Plutarco mais de quatrocentos anos depois da morte de Alexandre, e mesmo assim os historiadores clássicos ainda as consideram como fidedignas. As fabulosas lendas sobre Alexandre Magno não se desenvolveram até os séculos após esses dois escritores. De acordo com Sherwin-White, os escritos de Heródoto nos permitem determinar a velocidade com que a lenda se acumula, e os testes mostram que mesmo duas gerações é duração de tempo muito curta para permitir que tendências lendárias destruam o núcleo de fatos históricos. Quando o doutor Sherwin- White se volta para os Evangelhos, ele declara que, para que os Evangelhos sejam lendas, a velocidade de acúmulo lendário teria de ser "inacreditável". Mais gerações seriam necessárias.

De fato, adicionar-se um espaço de tempo de duas gerações à morte de Jesus leva ao século II, bem quando os Evangelhos apócrifos começam a aparecer. Eles contêm todos os tipos de histórias fabulosas sobre Jesus, tentando preencher os anos entre Sua infância e o começo de Seu ministério, por exemplo. Essas são as lendas óbvias procuradas pelos críticos, não os Evangelhos bíblicos.
Esse ponto se torna ainda mais devastador para o ceticismo quando recordamos que os próprios Evangelhos usam fontes que remontam a ainda mais perto aos eventos da vida de Jesus. Por exemplo, a história do sofrimento e morte de Jesus, comumente chamado de a História da Paixão, foi provavelmente não originalmente escrito por Marcos. Em vez disso, Marcos usou uma fonte para essa narrativa. Uma vez que Marcos é o Evangelho mais primitivo, sua fonte deve ser mais primitiva ainda. De fato, Rudolf Pesch, alemão especialista em Marcos, diz que a fonte da Paixão deve remontar a, pelo menos, 37 A.D., apenas sete anos após a morte de Jesus3.

Ou, novamente, Paulo, em suas cartas, transmite informações concernentes a Jesus sobre Seu ensino, Sua Última Ceia, Sua traição, crucificação, sepultamento e aparições da ressurreição. As cartas de Paulo foram escritas até mesmo antes dos Evangelhos, e algumas de suas informações, como, por exemplo, o que transmite em sua primeira carta à igreja de Corinto sobre as aparições da ressurreição [I Co 15:3-8], têm sido datadas dentro dos cinco anos após a morte de Jesus. Torna-se simplesmente irresponsável falar de lendas em tais casos.

5. Os escritores dos Evangelhos tinham um comprovado registro de confiabilidade histórica. Novamente, tenho tempo somente para observar um exemplo: Lucas. Lucas foi o autor de uma obra em duas partes: o Evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos. Estes são, na verdade, uma só obra, e são separados em nossas Bíblias somente porque a igreja agrupou em conjunto os Evangelhos no Novo Testamento. Lucas é o escritor evangélico que escreve mais autoconscientemente como historiador. No prefácio a sua obra, ele escreve:
Tendo, pois, muitos empreendido pôr em ordem a narração dos fatos que entre nós se cumpriram, segundo nos transmitiram os mesmos que os presenciaram desde o princípio, e foram ministros da palavra, pareceu-me também a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelente Teófilo, por sua ordem, havendo-me já informado minuciosamente de tudo desde o princípio; para que conheças a certeza das coisas de que já estás informado.
Este prefácio está escrito em terminologia do grego clássico como a que era usada por historiadores gregos; depois disso, Lucas muda para um grego mais comum. Mas ele colocou em alerta seu leitor de que ele pode escrever, se desejasse fazê-lo, como um erudito historiador. Ele fala de sua extensa investigação da história que está prestes a contar e assegura-nos de que é baseada em informações de testemunhas oculares e está de acordo com a verdade.

Ora, quem era esse escritor que chamamos de Lucas? Ele, claramente, não era testemunha ocular da vida de Jesus. Mas descobrimos sobre ele um fato importante, a partir do livro de Atos. Iniciando no capítulo dezesseis de Atos, quando Paulo chega a Trôade, na moderna Turquia, o autor repentinamente começa a usar a primeira pessoa do plural: "navegando de Trôade, fomos em linha reta para a Samotrácia", "de lá fomos para Filipos", "saímos da cidade para a beira do rio, onde julgávamos haver um lugar de oração", etc. A explicação mais óbvia é que o autor se unira a Paulo em sua viagem evangelística pelas cidades mediterrâneas. No capítulo 21, ele acompanha Paulo de volta à Palestina e, finalmente, a Jerusalém. Isso significa que o escritor de Lucas-Atos estava, na realidade, em contato direto com as testemunhas oculares da vida e ministério de Jesus em Jerusalém. Críticos céticos têm feito acrobacias para evitar essa conclusão. Dizem que o uso de primeira pessoa do plural em Atos não deveria ser tomado literalmente; é apenas um dispositivo literário comum nas histórias antigas de viagens marítimas. Não tem importância muitas das passagens em Atos não serem sobre viagens marítimas de Paulo, mas ocorrerem em terra! O ponto mais importante é que essa teoria, quando verificada, transforma-se em pura fantasia.4 Simplesmente, não havia qualquer dispositivo literário de viagens marítimas em primeira pessoa do plural — tem-se mostrado que tudo isso não passa de ficção acadêmica! Não há como evitar a conclusão de que Lucas-Atos foi escrito por um viajante companheiro de Paulo que teve a oportunidade de entrevistar testemunhas oculares da vida de Jesus enquanto ele esteve em Jerusalém. Quem eram algumas dessas testemunhas? Talvez, podemos ter alguma sugestão ao subtrair do Evangelho de Lucas tudo que é encontrado nos outros evangelhos, e ver o que é peculiar a Lucas. O que se descobre é que muitas das narrativas peculiares a Lucas são conectadas a mulheres que seguiram Jesus: pessoas como Joana e Suzana e, significativamente, Maria, mãe de Jesus.

Seria o autor confiável, tendo obtido os fatos diretamente? O livro de Atos nos permite responder decisivamente a essa questão. O livro de Atos sobrepõe-se significativamente com a história secular do mundo antigo, e a exatidão histórica de Atos é indiscutível. Isso foi recentemente demonstrado, novamente, por Colin Hemer, estudioso clássico que se voltou para os estudos neotestamentários, em seu livro The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History [O Livro de Atos no Contexto da História Helenística].5 Hemer vasculha o livro de Atos com um pente fino, tirando dele uma riqueza de conhecimento histórico, percorrendo desde o que seria conhecimento comum até detalhes que somente uma pessoa local saberia. Incessantemente, a precisão de Lucas é demonstrada: desde as navegações da frota alexandrina ao terreno costeiro das ilhas mediterrâneas até os peculiares títulos oficiais locais, Lucas está correto. De acordo com o professor Sherwin-White, "para Atos, a confirmação de historicidade é esmagadora. Qualquer tentativa de rejeitar sua historicidade básica, mesmo em questões de detalhe, agora parece absurda"6. O julgamento de Sir William Ramsay, o mundialmente famoso arqueólogo, ainda permanece: "Lucas é historiador de primeira categoria... Esse autor deveria ser colocado ao lado dos maiores dentre os historiadores"7. Dado o cuidado de Lucas e a demonstrada confiabilidade, bem como o contato dele com testemunhas oculares dentro da primeira geração após os eventos, esse escritor é fidedigno.

Com base nas cinco razões que listei, temos justificativas para aceitar a confiabilidade histórica do que os Evangelhos afirmam sobre Jesus, a menos que sejam provados como errados. No mínimo, não podemos pressupor que são errados até que sejam provados corretos. A pessoa que nega a confiabilidade dos Evangelhos deve levar o ônus da prova.

Aspectos específicos da vida de Jesus

Ora, pela própria natureza do argumento, será impossível dizer muito mais além do que isso para provar que certas histórias nos Evangelhos são historicamente verdadeiras. Como se pode provar, por exemplo, a história da visita de Jesus a Maria e Marta? Tem-se aqui uma história contada por um autor confiável, em posição de saber e sem razões para duvidar da historicidade da narrativa. Não há muito mais a dizer.

Entretanto, para muitos dentre os eventos-chave nos Evangelhos, muito mais pode ser dito. O que eu gostaria de fazer no momento é empregar alguns importantes aspectos de Jesus nos Evangelhos e falar algo a respeito da credibilidade histórica deles.

1. O autoconceito radical de Jesus como Filho de Deus. Críticos radicais negam que o Jesus histórico pensou acerca de Si mesmo como o divino Filho de Deus. Dizem que, após a morte de Jesus, a igreja primitiva reivindicou que ele dissera tais coisas, conquanto não o tivesse.

O grande problema com essa hipótese é que é inexplicável como judeus monoteístas poderiam ter atribuído divindade a um homem que conheceram, se ele jamais tivesse, por si mesmo, reivindicado qualquer dessas coisas. O monoteísmo é a essência da religião judaica, e seria blasfemo dizer que um ser humano era Deus. Porém, é precisamente o que os cristãos mais primitivos proclamavam e acreditavam sobre Jesus. Tal afirmação deve estar enraizada no próprio ensinamento de Jesus.

E, na realidade, a maioria dos estudiosos acredita que, entre as palavras historicamente autênticas de Jesus — essas são as palavras que nos evangelhos que o Jesus Seminar imprimiria em vermelho —, há afirmações que revelam a autocompreensão divina que Ele tinha. Alguém pode fazer uma palestra inteira somente sobre esse ponto; mas permita-me focalizar no autoconceito de Jesus como sendo o divino e singular Filho de Deus.

A radical autocompreensão de Jesus é revelada, por exemplo, em Sua parábola dos ímpios lavradores da vinha. Mesmo estudiosos céticos admitem a autenticidade dessa parábola, já que também é encontrada no Evangelho de Tomé, uma das fontes favoritas deles. Nessa parábola, o proprietário da vinha envia servos aos lavradores da vinha para colherem o fruto dela. A vinha simboliza Israel, o proprietário é Deus, os lavradores são os líderes religiosos judeus, e os servos são profetas enviados por Deus. Os lavradores espancaram e rejeitaram os servos do proprietário. Finalmente, o proprietário diz: "Mandarei meu filho amado, unigênito. A ele ouvirão". Em vez disso, os lavradores mataram o filho, porque ele era o herdeiro da vinha. Ora, o que essa parábola nos diz sobre a autocompreensão de Jesus? Ele pensava de Si mesmo como o especial filho de Deus, distinto de todos os profetas, o mensageiro último de Deus, e mesmo o herdeiro de Israel. Esse não era um mero andarilho judeu!

A autoconcepção de Jesus como filho de Deus tem expressão explícita em Mateus 11.27: "Todas as coisas me foram entregues pelo Pai; e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar". Novamente, há bons motivos para se considerar este como um autêntico dito do Jesus histórico. É retirado de uma antiga fonte que era compartilhada por Mateus e Lucas, chamada por estudiosos de documento Q. Ademais, é improvável que a Igreja inventou esse dito, porque diz que o Filho é incognoscível — "ninguém conhece o Filho, senão o Pai" —, mas para a Igreja pós-Páscoa nós podemos conhecer o Filho. Então, esse dito não é o produto de teologia tardia da Igreja. O que ele nos diz sobre a autoconcepção de Jesus? Ele pensava de Si mesmo como o exclusivo e absoluto Filho de Deus e a única revelação de Deus à humanidade! Não se engane: se Jesus não era quem disse ser, era ela mais louco do que David Koresh e Jim Jones juntos8!

Por último, quero considerar mais um dito de Jesus, quando falou sobre a data de Sua segunda vinda em Marcos 13.32. "Quanto, porém, ao dia e à hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu nem o Filho, senão o Pai". Esse é um autêntico dito do Jesus histórico, pois a igreja posterior, que considerava Jesus como divino, jamais teria inventado um dito atribuindo conhecimento limitado ou ignorância a Jesus. Mas aqui Jesus diz que não sabia do tempo de Seu retorno. Então, o que aprendemos dessa afirmação? Ela não somente revela a consciência de Jesus de ser o único Filho de Deus, mas apresenta-nos com uma escala ascendente, a partir dos homens até os anjos, passando pelo Filho até o Pai, uma escala em que Jesus transcende qualquer ser humano ou angelical. Isso é realmente incrível! Porém, é nisso que o Jesus histórico acreditava. E essa é apenas uma faceta da autocompreensão de Jesus. C. S. Lewis estava certo, quando disse:
Um homem que fosse somente um homem e dissesse as coisas que Jesus disse não seria um grande mestre da moral. Seria um lunático — no mesmo grau de alguém que pretendesse ser um ovo cozido — ou então o diabo em pessoa. Faça a sua escolha. Ou esse homem era, e é, o Filho de Deus, ou não passa de um louco ou coisa pior. Você pode querer calá-lo por ser um louco, pode cuspir nele e matá-lo como a um demônio; ou pode prosternar-se a seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas que ninguém venha, com paternal condescendência, dizer que ele não passou de um grande mestre humano. Ele não nos deixou essa opção, e não quis deixá-la.9
2. Os milagres de Jesus. Mesmo os críticos mais céticos não podem negam que o Jesus histórico realizou ministério de operação de milagres e exorcismo. Rudolf Bultmann, um dos estudiosos mais céticos que este século pôde ver, escreveu em 1926:
A maioria das histórias de milagres contidos nos Evangelhos é lendária, ou ao menos vestida com lendas. Mas não pode haver dúvida de que Jesus fez tais obras, que eram, no entendimento dele e de seus contemporâneos, milagres, isto é, ações resultantes de causalidade divina, sobrenatural. Sem dúvida, ele curou os doentes e expulsou demônios.10
Na época de Bultmann, pensava-se que as histórias de milagres foram influenciadas por histórias de heróis mitológicos e, portanto, ao menos em parte eram lendárias. Mas, atualmente, reconhece-se que a hipótese de influência mitológica estava historicamente incorreta. Craig Evans, conhecido estudioso sobre Jesus, diz que a "noção antiga" de que as histórias de milagres foram produto de ideias de homens caracterizadas pelo mitológico "tem sido amplamente abandonada"11. Ele diz: "Não mais se contesta seriamente que os milagres tiveram um papel no ministério de Jesus". A única razão que resta para negar que Jesus realizou milagres literais é a pressuposição do antissobrenaturalismo, que é simplesmente injustificada.

3. O julgamento e crucificação de Jesus. De acordo com os Evangelhos, Jesus foi condenado pela suprema corte judaica, sob acusação de blasfêmia, e então entregue aos romanos para execução, por Seu ato de traição ao colocar-Se como Rei dos Judeus. Esses fatos não são confirmados somente por fontes bíblicas independentes como Paulo e os Atos dos Apóstolos, mas também por fontes extrabíblicas. De Josefo e Tácito, aprendemos que Jesus foi crucificado pelas autoridades romanas sob sentença de Pôncio Pilatos. De Josefo e Mara bar Serapião, aprendemos que os líderes judeus fizeram acusação formal contra Jesus e participaram dos eventos que O levaram à crucificação. E do Talmude Babilônico, Sinédrio 43a, aprendemos que o envolvimento judeu no julgamento era explicado como a atitude adequada contra um herege. Conforme Johnson, "o apoio para o modo de sua morte, seus agentes, e talvez coagentes, é esmagador: Jesus encarou julgamento antes de sua morte, foi condenado e executado por crucificação"12. A crucificação de Jesus é reconhecida até mesmo pelo Jesus Seminar como "fato indiscutível"13.

Mas isso levanta uma questão muito enigmática: por que Jesus foi crucificado? Como vimos, a evidência indica que Sua crucificação foi instigada por causa de Suas afirmações blasfemas, que para os romanos soariam como traidoras. É por isso que Ele foi crucificado, nas palavras da plaqueta que foi pregada à cruz, acima de Sua cabeça, como "O Rei dos Judeus". Mas se Jesus fosse apenas um andarilho, um filósofo cínico, apenas um liberal contestador social, como afirma o Jesus Seminar, então Sua crucificação se torna inexplicável. Como o doutor Leander Keck, da Universidade Yale, disse: "A ideia de que esse cínico judeu (e seus doze hippies), com seu comportamento e aforismos, era uma séria ameaça à sociedade soa mais como presunção de acadêmicos alienados do que sólido julgamento histórico"14. O estudioso de Novo Testamento John Meier é igualmente direto. Ele diz que um insosso Jesus que saía falando parábolas e dizendo às pessoas para olharem os lírios do campo — "tal Jesus", ele diz, "não ameaçaria ninguém, assim como professores universitários que o criam não ameaçam ninguém"15. O Jesus Seminar criou um Jesus que é incompatível com o fato indiscutível de Sua crucificação.

4. A ressurreição de Jesus. Parece-me que há quatro fatos estabelecidos que constituem evidência indutiva para a ressurreição de Jesus:

Fato 1: Após a crucificação, Jesus foi sepultado por José de Arimatéia no túmulo. Esse fato altamente considerável, pois significa que o local do túmulo de Jesus era conhecido por judeus e cristãos, indistintamente. Nesse caso, torna-se inexplicável como a crença em Sua ressurreição poderia surgir e florescer diante de um túmulo contendo Seu cadáver. De acordo com o falecido John A. T. Robinson, da Universidade de Cambridge, o honrável sepultamento de Jesus é um dos "mais primitivos e mais bem atestados fatos sobre Jesus"16.

Fato 2: Na manhã de domingo seguinte à crucificação, o túmulo de Jesus foi encontrado vazio por um grupo de seguidoras. De acordo com Jakob Kremer, especialista austríaco na ressurreição, "de longe, a maioria dos exegetas sustentam firmemente a confiabilidade das afirmações bíblicas concernentes ao túmulo vazio"17. Como indica D. H. van Daalen, "é extremamente difícil objetar ao túmulo vazio com bases históricas; aqueles que o negam, fazem-no com base em suposições teológicas ou filosóficas"18.

Fato 3: Em múltiplas ocasiões e em variadas circunstâncias, diferentes indivíduos e grupos de pessoas tiveram experiências de aparições de Jesus vivo dentre os mortos. Esse é um fato quase universalmente reconhecido entre estudiosos de Novo Testamento, atualmente. Mesmo Gerd Lüdemann, talvez o mais proeminente crítico atual da ressurreição, admite: "Pode-se tomar como historicamente certo que Pedro e os discípulos tiveram experiências após a morte de Jesus nas quais Jesus apareceu a eles como o Cristo ressurreto"19.

Por último, o fato 4: os discípulos acreditavam que Jesus fora ressuscitado dentre os mortos, a despeito de terem todos os motivos para não crer. Apesar de terem toda a predisposição para o contrário, é fato histórico inegável que os discípulos originais criam em, proclamavam e estavam dispostos a morrerem por causa da ressurreição de Jesus. C. F. D. Moule, da Universidade de Cambridge, conclui que temos, nesse caso, uma crença a qual nada, em termos de influências históricas prévias, pode explicar — exceto a própria ressurreição20.

Portanto, qualquer historiador responsável que procura dar explicações ao assunto deve lidar com esses quatro fatos independentemente estabelecidos: o honrável sepultamento de Jesus, a descoberta de Seu túmulo vazio, Suas aparições como vivo, após a morte, e a própria origem da crença dos discípulos em Sua ressurreição e, portanto, do próprio Cristianismo. Quero enfatizar que esses quatro fatos representam não as conclusões de estudiosos conservadores — nem citei estudiosos conservadores —, mas representam, pelo contrário, a visão majoritária da erudição neotestamentária, atualmente. A questão é: como melhor se explicam esses fatos?

Ora, isso coloca o crítico cético em uma situação um tanto quanto desesperadora. Por exemplo, algum tempo atrás, tive um debate com certo professor da Universidade da Califórnia, Irvine, acerca da historicidade da ressurreição de Jesus. Ele havia escrito sua dissertação doutoral sobre o assunto e estava meticulosamente familiarizado com as evidências. Ele não poderia negar os fatos do honrável sepultamento de Jesus, Seu túmulo vazio, Suas aparições pós-morte, e a origem da crença dos discípulos em Sua ressurreição. Portanto, o único recurso dele era oferecer explicação alternativa para esses fatos. Assim, ele argumentou que Jesus tinha um desconhecido irmão gêmeo idêntico que foi separado dele no nascimento, voltou para Jerusalém exatamente no período da crucificação, roubou o corpo de Jesus da sepultura, e apresentou-se aos discípulos, que por engano inferiram que Jesus ressuscitara dentre os mortos! Ora, não mostrarei como refutei a teoria dele, mas acho que tal teoria é instrutiva, por mostrar até que distâncias desesperadas o ceticismo deve ir a fim de negar a historicidade da ressurreição de Jesus. De fato, as evidências são tão poderosas que um dos principais teólogos judeus da atualidade, Pinchas Lapide, declarou-se convencido, com base nas evidências, de que o Deus de Israel ressuscitou Jesus dentre os mortos!21

Conclusão

Em resumo, os Evangelhos não são documentos fidedignos somente de maneira geral, mas quando observamos alguns dos mais importantes aspectos de Jesus nos Evangelhos, como Suas radicais afirmações pessoais, Seus milagres, Seu julgamento e crucificação e Sua ressurreição, a veracidade histórica disso tudo irradia. Deus agiu na história, e podemos saber disso.

Notas finais

1 Luke Timothy Johnson, The Real Jesus (São Francisco: Harper San Francisco, 1996), p. 123.

2 A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (Oxford: Clarendon Press, 1963), pp. 188-91.

3 Rudolf Pesch, Das Markusevangelium, 2 vols., Herders Theologischer Kommentar zum Neuen Testament 2 (Freiburg: Herder, 1976-77), 2: 519-20.

4 Veja a discusão em Colin J. Hemer, The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf, Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament 49 (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1989), cap. 8.

5 Ibid., capítulos 4 e 5.

6 Sherwin-White, Roman Society, p. 189.

7 William M. Ramsay, The Bearing of Recent Discovery on the Trustworthiness of the New Testament (Londres: Hodder & Stoughton, 1915), p. 222.

8 David Koresh e Jim Jones foram líderes religiosos que levaram suas seitas ao suicídio coletivo. (N. do T.)

9 C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples, trad. Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão Cipolla (São Paulo: Martins Fontes, 2005), pp. 69, 70.

10 Rudolf Bultmann, Jesus (Berlin: Deutsche Bibliothek, 1926), p. 159. 

11 Craig Evans, "Life-of-Jesus Research and the Eclipse of Mythology", Theological Studies 54 (1993): 18, 34. 

12 Johnson, Real Jesus, p. 125.

13 Robert Funk, fita de vídeo do Jesus Seminar.

14 Leander Keck, "The Second Coming of the Liberal Jesus?", Christian Century (Agosto, 1994), p. 786.

15 John P. Meier, A Marginal Jew, vol. 1: The Roots of the Problem and the Person, Anchor Bible Reference Library (New York: Doubleday, 1991), p. 177.

16 John A. T. Robinson, The Human Face of God (Filadélfia: Westminster, 1973), p. 131.

17 Jakob Kremer, Die Osterevangelien--Geschichten um Geschichte (Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1977), pp. 49-50.

18 D. H. Van Daalen, The Real Resurrection (Londres: Collins, 1972), p. 41.

19 Gerd Lüdemann, What Really Happened to Jesus?, trad. John Bowden (Louisville, Kent.: Westminster John Knox Press, 1995), p. 80.

20 C. F. D. Moule and Don Cupitt, "The Resurrection: a Disagreement", Theology 75 (1972): 507-19.

21 Pinchas Lapide, The Resurrection of Jesus, trad. Wilhelm C. Linss (Londres: SPCK, 1983).

© William Lane Craig